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BONSUCESSO MON AMOUR



 Ele ficava na janela, espiando os carros que passavam pelas ruas do Leblon. Ela, completamente nua na cama, admirava seu parceiro só de cueca e de costas. Ficava torcendo para ele vir imediatamente para a cama e roçar a sua pele , que para ela era a mais macia do que qualquer homem que tivesse conhecido. Aliás, ela desconfiava que só aguentava as diferenças culturais e financeiras, desse seu relacionamento adolescente(bem como sua mãe dizia), por causa da sua pele; pele negra e macia.
Ele parecia envolto de mistérios e comentários inteligentes, mas quando saía da janela , só reclamava em não entender o porquê dos amigos dela terem tanta depressão. Ele não conseguia entender, e ela muito menos não entendia o porquê daqueles questionamentos. Para ela, a vida dos outros pouco importava,ela uma psicológa bem resolvida e que já havia experimentado de tudo (ou pelo menos achava) na vida e tinha tudo o que desejava, pouco importava se o vizinho morria atropelado ou se jogava do sexto andar.
Ele andava pelo quarto de cueca e nem fazia menção de voltar a cama, só tinha olhos para o frigobar e seu cigarro de maconha que deslizava sobre seus dedos. Pegava um latão de sua cerveja predileta, e voltava para admirar os carros e as pessoas que passavam por aquela avenida movimentada e cara. Ela , às vezes, perdia tempo o chamando, recebia só um “já vai” de uma homem absorto em um mundo que não lhe pertencia. A praia sempre foi seu sonho de consumo, e ele se via agora de frente para ela, talvez por isso não se entretesse de admirar sua parceira (sedenta por sua pele) de olhos azuis e cabelos cor de cobre natural. Ele só conseguia admirar todo aquele universo emoldurado pela grande janela do quarto dela.
Ele costumava dizer que em Bonsucesso ,a maior diversão, era ir para a praça das nações e ficar olhando aquele movimento de vans e pessoas sempre atrasadas, e ou ávidas por uma promoção sempre eminente em um alto falante , ou na voz esganiçada de um vendedor qualquer. Ele era capaz de ficar quase meia hora petrificado sobre a janela do quarto. Ela , saía da cama, andava nua pelo quarto, fumava seu cigarro importado e bebia sua vodka do momento, mesmo reclamando que a bebida atacava ainda mais sua azia. Ela fazia de tudo para chamar sua atenção, colocava a música mais alta, urinava de porta aberta , mexia nos toques do celular, ligava a tv, mais nada o irritava e nem chamava sua atenção.
Em um final de semana , no sábado de praia lotada e casos a serem observados, ele estava na sua terceira cerveja , quando uma frase dela o chamou atenção. Pronto, estava marcado ali o ponto que o podia fazer sair daquele estado de observação e vir correndo para a cama oferecer-lhe a pele , e o que fosse de direito dela para ter prazer. A frase, era o contrário do que sempre ele dizia ; ele falava que não entendia o mundo dela e ela lhe disse que entendia muito bem o mundo dele. Foi só ela soltar essa frase de efeito, que de imediato ele se voltou a ela.
Ele se voltou a ela, que estava completamente nua na cama , e sorriu com uma ironia ímpar. Ela aceitou a provocação e lhe disse que , entendia melhor do que ele tudo , pois estudou para diagnosticar defeitos , pudores e medos. Ela entendia muito bem, segundo sua lógica, o que as pessoas em Bonsucesso passavam. As suas dores, seus desejos, seus medos e amores. Ela sabia. Ele riu ainda mais alto e terminou de fumar sua maconha e beber o último gole de cerveja. Se aproximou dela, como sempre fazia depois de horas observando a janela. Só que agora ele sentou calmamente na cama e a olhou bem nos olhos.
Ela sabia que aquilo não era postura de quem queria transar mais uma vez com ela, sabia que tinha afugentado algum fantasma de sua memória diversificada e cheia de traumas do passado e presente. Ela sabia provocá-lo, mais dessa vez desconfiou pela segurança de seu olhar e sua voz pausada. Ele disse que jamais iria entender o mundo dele, pois ela estava a uma distância enorme e gente da classe dela jamais fez uma força para diminuir esse buraco que os separavam. Falou que jamais ela sabia o que era comer arroz , feijão, ovo e tomate e se dar por satisfeito, jamais ela saberia o que é perder o pai por erro médico em um hospital público, e jamais saberia o que é raspar a poupança para pagar o enterro do pai. Disse tantos “jamais”, que ela se perdeu no fio de sua narrativa e começou a rir.
Riu, não de forma irônica ou pensada, mais de uma forma descontrolada, como se não entendesse o porquê daquele assunto ter começado. Riu, por nervosismo e por incômodo, depois viu o abismo que tinha aberto entre os dois, saiu da cama, colocou sua calcinha e logo após seu hobby que mais parecia um kimono japonês. Ela o conhecia e sabia que estava prestes a estourar , com seus arroubos de ignorância e sem o mínimo tato. Ele conteve-se e não estourou como o esperado. Apenas continuou a falar de forma pausada e clara, como nunca antes havia falado, o que de certa forma, a deixou impressionada. Mas ela sabia que ali estava contido um vulcão que a qualquer hora poderia estourar seus ouvidos, sendo por vezes agressivo e vulgar.
Mas ele não, foi educado o suficiente para terminar suas idéias. Falou ainda que ela era uma péssima psicóloga porque não fazia da profissão um sustento. Que não se sustentava o suficiente a ponto de pedir diversas vezes no ano ajuda para seu pai. E continuou por uma linha de raciocínio que não só fugia de sua vida pessoal e social (o motivo do começo do seu discurso), bem como, seguia para um lado cada vez mais ofensivo a sua parceira. Ela, a esse ponto da história, estava estática e já vestida. Começou a fumar seu cigarro caro e a beber sua vodka , o observando. Notou que ele não a olhava, mais continuava ralhando como um cão abandonado e sem argumentos plausíveis. Ele percebeu sua observação e ficou ainda mais irritado, voltou a falar de sua vida, e engatou novamente sua fila de “jamais” para sua parceira: que ela jamais saberia um peso de um fuzil, jamais saberia o que é apanhar da polícia e jamais saberia o que ter de ver um julgamento prévio em uma favela.
Começou a vomitar verbos e histórias que pareciam lhe vir à tona como uma furacão de estórias mal escritas e ditadas. Era ele quem exorcizava seus fantasmas alia na cama de cueca, de forma totalmente descontrolada , enquanto que ela serena e bem resolvida no momento ouvia  todo aquele discurso fora de hora e ordem serem derramados pelo seu parceiro. Entendeu que ali era o fim de uma aventura que começara no litoral carioca , mais precisamente em Arraial do Cabo. Sabia que era culpa dela ter levado seu tesão e instinto longe demais, e que o abismo entre os dois era insustentável e sem remendos e ou aterros. Estava óbvio que era um grave erro seu.
 Ele era uma metralhadora ambulante de raiva, ódio e distorções. Praticamente, na sua concepção , um analfabeto, surdo para um mundo que não compreendia e nem teria tato para compreender. Ela o observou e só conseguiu ter pena dele e procurava entender todos os porquês que fizeram ela enfrentar esse relacionamento. Ele ao contrário, continuou sua tese de desencontros e era cada vez mais irônico ao falar do mundo dela e suas futilidades. Ele a provocava mais não sentia reação nenhuma dela, o que o fazia encher de mais ódio e ironia suas observações.
Ela dava graças a Deus aquela discursão fora de hora ter acontecido , pois seria o motivo inicial para começar o término de sua aventura. Assim ela encarava um relacionamento de quase dois anos, uma aventura. Se ele ouvisse seus pensamentos poderia até agredi-la. Como não ouviu, ele vencido pela indiferença da parceira, foi até o frigobar e pegou mais uma cerveja. Ela não o deixou beber, falou que queria dar uma volta de carro e que poderia aproveitar para deixá-lo em sua casa. Ele concordou, e colocou suas roupas, e de vez enquanto soltava um comentário tentando voltar ao assunto de diferenças sociais que havia iniciado.
Ela atravessou o túnel rebouças  pegou e os viadutos que davam acesso a Bonsucesso. O bairro dia de domingo era mais mudo, do que o mendigo que pedia esmola ao lado da loja de roupas baratas, onde ele costuma se empanturrar de promoções. Pouco se falaram; ele que tentou puxar um fio de comunicação , mais só recebia um hã, como resposta. E assim foi até o final do trajeto, ele compondo orações imensas, cheias de humor e ironia e ela monossilábica. Quando chegaram a porta de sua casa, eles se beijaram de forma rápida e sem dar uma palavra. Ela arrancou o carro como quem não queria ficar um só minuto naquela rua e ou bairro. Ele apenas a viu sumir na curva próxima de sua casa. Ele entrou, pois não achava a menor graça admirar as ruas do seu bairro.
Enquanto ele entrava em sua casa, ela seguia o caminho de volta para o Leblon, parecia absolutamente envolta em seus pensamentos e cumpria a forma mecânica de dirigir como se fosse um ritual. Não pensava nele, enquanto ele pensava cada vez nela, no bairro, no apartamento, na janela do quarto dela. Ele ,então, sentou no seu pequeno quintal e fumou seu cigarro apertado que estava sempre a posto no bolso. Jogava a fumaça como um galã de cinema, mas tossia sempre, como que engasgado em pensamentos e lembranças de sua parceira, enquanto que ela, apenas seguia o caminho inverso da casa dele com a certeza de quem nunca voltaria a Bonsucesso e ainda de quem não faria o mínimo esforço para compreendê-los: ele e seus fantasmas...


FIM

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