JOÃO GOLINHA
Ao meio dia, na década de sessenta, o centro de
Caxias parava. Não muito diferente das cidades do interior do Maranhão, a terra
de Gonçalves Dias, “dormia” na hora do almoço. O sol tinindo do começo da tarde,
iluminava praças e ruas praticamente vazias. Vez ou outra era possível ver: uma
senhora portando da sua sombrinha, ou um morador da zona rural vindo resolver
algo no centro, em suas velhas bicicletas.
João Fahd Sekeff, ganhou fama por ter o arroto
mais alto da cidade: dizia-se que se ouvia da rua São Benedito, onde residia,
até a praça da Matriz. Sendo exagero ou não, já era tradição, pelo menos nos
seus arredores, toda a vizinhança esperar os arrotos logo após seus almoços.
Eram ali, por volta das treze horas da tarde que eles eram escutados. Começavam
tímidos e iam aumentando conforme seu João ia relaxando no decorrer dos
minutos.
Seu Benedito, músico e militar, um exímio
trompetista chegou até a afirmar, que os ditos arrotos tinham sincronicidade e
uma certa musicalidade. O fato era que das treze horas até abrir seu comércio
depois do almoço, quem passasse pela rua era convidado a ouvir uma sintonia dos
seus arrotos. O professor de história Rodrigo Passos, seu amigo de longa data,
propôs até que se fizesse uma moção na Câmara de Vereadores da cidade, para que
João Fahd Sekeff fosse
homenageado pelas suas eructações vespertinas.
O vereador Ribamar Soares, o Ribinha do poço,
famoso por trocar votos por poço artesianos, levou tão a sério a sugestão do
professor Rodrigo, que executou a homenagem, sendo inclusive de sua autoria, o
apelido João Golinha, por insistir em dizer que ele tomava goles de Azeite de
Oliva, antes e depois do almoço, e arrotava com um som limpo e musical,
parecendo um pássaro nordestino, o golinha. Já alguns aposentados que jogavam
dominó na praça da matriz, confabulavam em dizer que era comida da Dona Samira,
a esposa de João Golinha, uma exímia cozinheira e sabia misturar os temperos
árabes, para que os mesmos produzissem os gases necessários para as suas ventosidades.
Dona Samira era famosa por suas variadas
especialidades em comidas: cozinhava do cozidão com verduras e legumes com a
ponta da agulha do boi, aos assados recheados com linguiça calabresa. Mas sua
especialidade mesmo era a variada e saborosa comida árabe. Era ali, segundo os
vizinhos, a base para a força e limpidez dos arrotos de João Golinha.
O prato predileto do João, que Dona Samira preparava
pelo menos três vezes na semana, era a Kafta assada no carvão em fogareiro de
ferro, abanado sistematicamente para não deixar a carne nem crua e nem muito
assada. Ela servia com arroz de lentilha
(Mjahdra) com muita cebola dourada, acompanhando também, de coalhada seca e
pasta de grão de bico (Homus).
A Kafta de carne de boi era temperada de um dia
pro outro, com um mix de carnes: de
segunda, geralmente acém e de primeira; sendo a maminha, alcatra e filé mignon
as escolhidas. Todas temperadas com sal, pimenta do reino, salsinha, hortelã
seca moída, pimenta síria, páprica defumada e Snobar. Há quem diga que a mistura
de tempero de dona Samira, era diferente de qualquer outro cozinheiro que
fizesse o mesmo prato. A carne ficava tão suculenta e saborosa que dizia-se,
derretia na boca, nem precisando maior esforço para mastigar.
O Vereador Ribinha do poço era famoso também,
não só por fazer homenagens inúteis em discursos calorosos sem fim. Ele, ora ou
outra, não deixando nem um espaço de mais de quinze dias, se convidava para
almoçar na casa de Dona Samira e seu João Golinha. É dele os principais
relatos, tanto das comidas, tendo o
arroz de linguiça e vagem servidos com frango recheado assado com farofa de
pimentões, entre seus pratos prediletos, quanto
da preparação de seu João para os famosos arrotos vespertinos.
Ribinha aliás, em suas várias defesas na
câmara, sempre dizia que os arrotos não eram nojentos e falta de educação, e
sim, um costume árabe que era uma referência ao gostar da comida. O historiador
Rodrigo Passos sempre ratificava as afirmações eloquentes do vereador, com sua
sempre parcimônia e lentidão de intelectual quarentão. Os dois foram os
responsáveis pela imagem e criação da lenda do João Golinha, cobrando
inclusive, que o próprio se divulgasse.
Já um pouco mais velho, ele aproveitou da sua
fama de glutão, para tentar fazer o seu pequeno comércio de secos e molhados
virar um mercado com mais opções. O investimento até que foi feito, e aumentou
consideravelmente o número de consumidores, com pessoas que vinham até de
Peritoró para conhece-lo, e por consequência, acabavam consumindo no seu mercadinho um ou
outro produto. O insucesso da empreitada, a grande falha, veio do próprio
administrador: seu João não tinha traquejo para lidar com compras em um volume
maior, e muito menos controlar o estoque do que já havia comprado.
Se meteu a comprar até medicamentos, misturando
pílula contra com temperos e Minâncora com graxas de sapato. Era uma confusão
geral no seu mercadinho, que mais parecia uma mistura de box de feira com
armarinho. Teve que fechar por dois dias, após um acidente com fogos de
artificio ,onde uma caixa de “bomba de murrão” explodiu perto do estoque de
mamão.
O projeto de supermercado não vingou, e o
deixou falido por completo. Dizia-se também, que após assumir um projeto maior,
as obrigações e demandas que o comercio exigia, não o fizeram mudar sua postura
que o acompanhou desde que virou comerciante: abrir umas seis e meia para
vender um pão quentinho, fechar para o almoço e só abrir depois das quinze, ou
“quando o sol baixasse mais”, atendendo o público com seus calções de elástico
frouxo, camisa no ombro , os poucos fios que restavam em sua cabeça assanhados
e, vez ou outra, soltando arrotos para a alegria da criançada que brincava na
calçada do estabelecimento.
Depois da sua falência, foi curtir sua
aposentadoria junto a sua esposa Samira, e coincidiu com seus passeios pelas
praças de Caxias, sendo um espetacular jogador de dominó e jogo de damas,
arrotando sempre que ganhava uma partida. Alguns até o deixavam ganhar só para
ouvi-lo arrotar, método que foi se especializando, após da aposentadoria
forçada, ao virar um voraz consumidor de refrigerantes; o que o fez produzir eructações
cada vez mais altas e longas e em quantidades que o mesmo não fazia antes.
Chegando até a soltar dezessete arrotos seguidos, em uma tarde na Praça Rui
Barbosa, para aplausos dos seus amigos e transeuntes daquela tarde. Aliás, até
hoje, a lenda de João golinha permanece nas praças de Caxias do Maranhão, da
Praça do Pantheon, Matriz ou da Chapada, sempre vai ter alguém que lembrará do
homem que arrotava como um passarinho do nordeste.
©José Viana Filho