Estávamos todos sentados. Um a olhar ao
outro, entrecortados por lembranças
fúteis que só se vê em um velório. Era uma tarde fresca e bruta. Estávamos, eu
e Júlio, folgados em ternos maiores que nossos números. Fumávamos Belmont.
“Para morremos mais rápido”, balbuciava Júlio
sempre ao acender o cigarro. Já haviam se passado mais de três horas, depois que os corpos
chegaram. Era o velório mais longo que já se havia presenciado, a única coisa
que nos salvava a aquele martírio
fúnebre, era o café. Uma hora ou outra , ouvia-se um leve som de Vivaldi,
tocando alguma estação. Era outono, o melhor mês para se morrer. Todo o cenário
já está pronto pronto para receber a doce e velha depressão do inverno, no
outono as flores e as folhas migram para nosso coração.
Em nenhum momento olhei os mortos, mas
ouvia-se comentários de que “estavam lindos”. Se é que pode haver defuntos com
alguma beleza a cativar. Estava tenso aquela hora, o café já não me servia e me
via a cada instante espremendo-se sobre pessoas que passeavam no salão (talvez
umas 35), e como era pequeno o salão.
Júlio estava mudo. A vista da janela me
incomodava, um cemitério longo e vasto, um sem fim que se perdia no horizonte.
Verdadeiras esculturas se erguiam, e
parecia-me que quanto mais oponente o túmulo, maior o poder. O maior estava na
entrada, olhei-o quando entrei, era do governador Lelis de Castro. Eram três
metros de altura por cinco da largura, com seu busto todo em bronze e suas
letras cravadas em tom prateado com a frase abaixo mencionando: “Foi preciso
que ele morresse, para seu povo lhe dar valor”. Enquanto o tempo se arrastava,
lembrei-me de uma das estórias que o povo contava de que o Governador se
apoderou das pedras de cantaria e do portão do cemitério para coloca-los no seu
sítio em Cruz quebrada, onde foi encontrado morto. Os nativos da região balbuciavam
sempre essa estória, e ainda por cima diziam que ele fora vítima de uma
maldição dos mortos, que vieram para cobrar-lhe o que era seu. De fato o
Governador havia morrido esmagado pelo portão, mas provou-se mais tarde que foi
imprudência do pedreiro que colocara somente barro e algumas pedras para
segurar um portão de aço com mais de meia tonelada. Meses depois o pedreiro foi
entrado morto com a boca repleta de pedaços de blocos de concreto.
Esse caso me veio a cabeça, mas
evaporou-se quando ouvi um grito de pavor e suspense, era a mãe de um dos mortos, ela começara a balbuciar algumas
palavras em latim, gritava, sorria e soluçava, de repente começou apontar para seu filho como se quisesse extrair
alguma culpa do pobre moribundo. Era Heliodora Bernardes, fina
Sra. da sociedade que andava sempre bem trajada e orgulhava-se de ter a
maior coleção de jóias da cidade, “mais que a primeira dama do Estado”
gabava-se nos seus surtos de exibicionismo. Seu marido desde que ficara
impotente gastava quase toda sua
aposentadoria em jóias para a mulher.
Alias, foi ele que se aproximou dela
primeiramente para tirara-la de perto dos dois caixões. Todos estavam
completamente estáticos com aquela cena,
uma mulher tão fina, sujeitando-se a
baixaria de lamentar duas mortes em público. Parecia completamente fora de si,
trajava apenas um roupão de banho e seus cabelos pareciam sair de uma
centrifuga com defeito. Mas em seu pescoço corria sua maior jóia, um cordão com os nomes dos seus dois
filhos cravados em diamante e rubi.
Voltei a si quando Júlio pediu-me para
observar os comentários das pessoas no velório.
E tinha muitos comentários que voavam naquela pequena sala com cheiro de
flores baratas e cigarros angustiados.
Odeio outono, acho tudo triste, mas parece
que com o cair da noite torno-me mais vulnerável, mais triste, mais insano.
Ainda mais por estar em um velório de dois grandes amigos. Ficara só, Júlio não
agüentou a família se recompor para
concretizar o enterro. E as cinco e quarenta da tarde o padre autorizou os
seguranças fecharem os caixões e para enfim enterramos os corpos. Não quis segurar um dos caixões,
também nem tentei, muito menos esperava que alguém me convidasse. Não vi
ninguém tomar a iniciativa, mas também pudera, uns brutamontes faziam uma
barreira impenetrável , que impediam qualquer ser humano de tomar uma iniciativa.
O padre pediu desculpas a todos os
presentes pela ausência dos familiares dos dois mortos, alegando choque
traumático em todos os próximos dos defuntos ali presentes. Depois de dizer que
aquele caso era a maior e mais dramática história que já havia presenciado em
sua vida, e pediu a todos que esse exemplo fosse visto para não ser mais
repetido. E sua últimas palavras ficaram cravadas em minha memória, pois ele
recitou um poema de Thiago de Mello enquanto os caixões desciam. “A morte é
indolor. O que dói nela é o nada que a vida faz do amor. Sopro a flauta
encantada e não dá nenhum som. Levo uma pena leve por não ter sido bom e no
coração, neve”.
E insistiu para que a cidade ficasse de
luto durante todo o mês, para que ficasse na memória de todos o caso de amor que jamais poderia ser repetido.
Quando os corpos desciam, eu sentia que minha cumplicidade também descia com
eles. Depois daquele dia eu e a cidade nunca mais existimos.
Capítulo I
Era impossível não notar o talento que se
dispertara em Paulo naquele ano. Em menos de três meses o menino prodígio
escrevera 100 poesias e 3 contos. Todos os seus escritos eram recheados de
metáforas e todo o conjunto de estilística que só o mais rebuscado escritor
contera. Seu talento fora descoberto por seu professor de Matemática. Poucos
minutos após passar um exercício de equação, notara que Paulo não se
concentrava em cálculos e sim estava mergulhado em mais uma ode ou balada, que
dedicaria mais tarde ao seu amor eterno.
O professor não pensou duas vezes para se dirigir, com
seu passo manco, à carteira que presenciava o surto de criatividade de um poeta
que nascia. Ao chegar à carteira, viu aquela figura minúscula, entretida e
completamente entregue aos seus manuscritos. Como era indefesa ! Parecia não
notar o semblante rústico do velho professor de Matemática.
O professor leu rapidamente umas estrofes do poema. Leu
pouco. Mas foi o suficiente para pedir ao sexagenário professor de Português
prestar atenção aos escritos daquele menino franzino.O professor nunca prestou,
mas o diretor sim. E gostou do que leu. Muito mais, ficou impressionado com o
tamanho talento que crescera em sua escola. Promoveu, um mês depois, um
Festival de Contos e Poesia: um mero pretexto para fazer Paulo ser reconhecido
por seu dom.
Paulo, como fora previsto, ganhou nas
duas categorias. O conto falava da estória de uma menina que passa toda a
infância vivenciando uma guerra e imagina que a paz é um intervalo entre uma
batalha e outra. Já a poesia era um soneto que comentava a dor de um homem que
perdera a inspiração.
Paulo fora aclamado pelo diretor da escola e todos que
ali estavam naquele dia tiveram a certeza de que naquela cidade nascera um
escritor. Filho único por circunstância
do destino, pois perdera seus irmãos mais velhos de um surto de tosse braba,
que matou metade dos anjos daquela cidade, Paulo crescera sem vícios e sem
parâmetros. Com exceção de uma ou outra tragada de cigarro, nunca fumava. A
única vez que bebera foi quando amanhecera entre as doces pernas de Mãe Preta,
a prostituta que iniciava todos os adolecentes bêbados da cidade.
Era católico, mas não fora crismado, pois desafiara o
padre ao dizer que Jesus Cristo era negro. Desgosto que sua mãe levara para o
todo o sempre junto com seus dias.Estudara toda sua vida na única escola
estadual daquele município. Anos mais tarde, escreveria uma crônica para o
Jornal A Queixa, de que fora essa a única dívida que tinha com o governo.
Era um menino bom. Bom não só por não ter contraído
vícios durante a adolecência, como também porque soubera levar sua vida pacata
sem reclamar um centésimo de seu tédio. O
fato que o fizera ser retirado de seu ambiente foi uma de suas poesias ter sido
premiada no 700o Concurso da Capital. Ficara também em 1o
lugar com o conto “em que devo votar”, em que uma bancada magistral na
esquerda, que ao mesmo tempo que reclamava não tinha, em sua opinião, forças
para levantar o governo. E fora com este conto, tido como reacionário, que Paulo
Guilherme Vitto conquistara a Capital.
Tudo indicava que seria esse o caminho que o menino de
ouro seguiria, mas Paulo contrariou à todos e foi fazer Engenharia Elétrica:
“para aprofundar-me no que tenho de mais franco”. Seus pais perceberam ali que
não o conheciam..
Capítulo II
Isa de Monteiro
Cruz nascera na Capital, no dia 09 de março de 1974. Era outono e seus pais mal
sabiam que nasceria ali sua única filha. Devido a uma inflamação, dois anos
depois a Sra. Carla Monteiro teria que extrair seu útero e ficar “uma mulher
sem função”, como costumava dizer depois do ocorrido.
Isa era profundamente perfumada. Um perfume natural, que
escorria da pele como flor. Era branca, como a revoada de cisnes sobre o lago.
Adorava ver crianças brincando, embora ela mesma, em sua condição, detestasse
brincar com outras da sua idade. Era só. Tinha a capacidade de concentrar-se em
um mundo só seu, mesmo que o mundo real teimasse em contrariar-lhe as idéias.
Crescera em um ambiente de amor e felicidade. Fora sempre mimada e educada para
ser independente. Aprendera a nadar com cinco anos e passou sua infância
solitária, a travar uma luta consigo mesma para bater seus próprios recordes.
Queimara bonecas, em sua imaginação, para sacrificar á Deus. Não rezava.
Não estudava, somente 3 horas antes da prova. Seguiu à
risca todos os ensinamentos da mãe. Tornou-se tão independente que, aos treze
anos, já ia de carro à escola. Fez curso de inglês e ria da pronúncia de seus
amigos, nas sonolentas aulas da matéria na escola. Era tímida, porém
intrinsecamente gostava de ser observada. Adorava ler prosa e não se
concentrava em poesia.
Se sentia tão
melancólica, que as vêzes beirada a depressão. Era só. Tinha dúvidas quanto ao
seu futuro. Ficou tão indecisa que só escolheu o curso na fila de inscrição do
vestibular. Ocorrera por sua cabeça milhões de idéias.... até que, por seguir
um surto de lucidez, resolveu fazer Psicologia. Seus pais nada comentaram.
Ela pouco importou-se.
Seguiu sua vontade impulsiva, assim como fez-se em delírios extremos e fechou
seu coração por meses. A faculdade começava no fim do verão. João de Monteiro
Cruz morrera em uma das noites mais quentes daquele verão. Era um homem
discreto. Passara sua vida quase imperceptível. Tinha os olhos de Monalisa:
parecia nos observar em todos os cantos e becos. Casara-se duas vêzes. Três
filhos. Os dois filhos do primeiro casamento o haviam abandonado. E ele tinha
um desgosto imenso com a personalidade de todos eles.
Em seu segundo casamento, com Carla Bel Monte, toda a sua
alegria foi recauchutada. Era expressivo e carinhoso com sua segunda esposa.
Não quisera filhos e jogara todo o seu rancor sobre sua doce filha, quando
nascera e, principalmente, quando crescera. Foi um pai ausente durante toda
a vida. Os dois trocaram poucas
palavras. Segundo a Sra. Carla Monteiro, as últimas palavras que ele
pronunciara antes de um infarto lhe vencer aos 62 anos foram: “Isa, não ame”.
Isa só saberia daquelas palavras de seu pai quando sua mãe, em seu leito de
morte, lhe as balbucia-se exatamente como seu marido fizera. Infelizmente, de
nada mais adiantariam.
Isa ficara,
durante todo aquele ano, mergulhada em estudos. Não que amasse Psicologia.
Achava Freud “objetivo e determinista
demais”, e Jung “relativo demais”.
Na verdade, no fundo não entendia nem tinha vocação para a mente humana.
Estudava para esquecer a dor de um pai ausente, para compensar a falta de um
amigo, companheiro, que lhe ouvisse.
Tudo lhe fazia falta. Desde o simples ato sexual à doces
palavras de amor. Sua mãe se perdera no tempo. Ela agora estava só. Era, entre
muitas outras pessoas no mundo, alguém que se sentia só. Até voltar seus olhos
para um livro que mudaria completamente sua vida.
Capítulo III
Paulo estava no segundo período do primeiro
ano da faculdade, e todo o seu tempo disponível era dedicado a sua produção
literária. Sua bolsa de estudo lhe era garantida àquele ano com a condição de
que o mesmo produzisse dois livros, um em prosa e outro em verso. E Paulo não
desapontara a Secretaria de Cultura da Capital.
Produzira
primeiro o livro de poesias intitulado “Era”.
Usava sempre as festas da faculdade para se promover. Ia em todas. Foi
vaiado por punks ao interromper uma festa para declamar seus poemas. Fazia
destes atos impulsivos uma espécie de marketing para se auto-promover. Era um
péssimo aluno, no entanto não só de notas vivia. A faculdade era seus arrimo.
Morava a duas quadras de lá, onde almoçava e jantava. Só voltava à sua casa
para dormir.
Era conhecido em todo o campus. Seus poemas ecoavam em cada canto
daquele território. Estava sempre em primeiro lugar, à frente de qualquer
discurso ou fórum social ou político. Estava tão decepcionado com sua vida de
estudante universitário que decidira contar tudo em 217 versos, completos e
herméticos, em rimas alternadas e consideradas por Josué Estrelas (colega de
falculdade) como a obra mais complexa de toda a Literatura Mundial.
Paulo intitulou-o “Psicologia do Medo” e lançou-o, é claro, no auditório
do campus central. Tratou de pedir à gráfica cartazes e folders para o seu
lançamento. E como faria mais tarde em todo
livro seu que viria a lançar, convidou os líderes de cada curso,
autoridades dos departamentos, a imprensa local, divulgou na rádio (ao som de
“Blues Give”), proclamando que este livro dissecaria mentes e atropelaria
provérbios.
Fora perverso durante as poucas palavras
que declarara naquele comercial de apresentação. Dispensou o reitor, poupou o
diretor do banco, que lhe negara créditos, sobretudo o cartão, de não ir. Pediu
aos dementes de plantão, às putas universitárias, aos professores medíocres e à
todos os vendedores de balas, que comparececem ã noite. Falou que não
distribuiria autógrafos e assim o fez.
Depois
de toda esta revolução de marketing, Paulo, a poucos minutos do lançamento, só
conseguia sentir uma coisa: medo.Isa soubera do lançamento pouco mais de duas
horas antes do acontecimento. Ouvira na rádio o comercial e achou-o
pretencioso, mas ao mesmo tempo libertino. E, acima de tudo, o título aguçara
sua percepção. Resolvera que iria até lá, e o fez.
O
auditório estava cheio. Os amigos de Paulo, Presidentes dos D.A.‘s, os
vendedores de balas, os garis que ali passavam, algumas universitárias de
plantão, uma ou duas putas, nenhum professor, quatro ou cinco diretores de
cursos e somente um pro Reitor (de pesquisa e extensão). Todos formavam um ar
denso e estavam apreensivos se haveria ou não a leitura dos duzentos e
dezessete versos em rimas alternadas, que contavam a tortura de um estudante
suicida que não encontrava satisfação pessoal em nada e frequentemente tinha
crises de medo perante todo o seu Universo.
Isa
chegou no horário em que Paulo chegou. Entraram juntos. Olharam-se, mas não se
virão. Ela de vestido vermelho longo (com um decote profundo que deixava à
mostra os ossos grandes das costas), com sapatos pretos que cintilavam leves
pedras de strass. Paulo com seu “velho companheiro, meu terno preto”, sapatos e
cintos marrons, camisa branca e a gravata que tinha em estampa uma foto de um
homem completamente sem dentes, sorrindo com uma lua ao fundo de sua boca.
Isa
sentou na fila C, na cadeira 3. Ele continuou em seus passos lentos e fóbicos,
com a ânsia de quem quer pisar nos pólos da terra. “Sras e Srs, o livro está pronto ! São duzentos e dezessete versos, com rimas alternadas, que
falam e decifram o medo. Não sou formado e nem estudo Psicologia. Estudo
Elétrica, mas sou humano e isso basta. O livro custa R$ 25,00 reais e não darei
autógrafos. Somente para minha mãe, Deus e à mulher que amo, abriria uma
exceção. Como minha mãe nem sabe que estou lançando um livro, Deus ainda não
sabe que existo e minha amada ainda reside em meus sonhos, deixo à todos o meu
carimbo ao lado, com a seguinte mensagem: “Obrigado
por ler, boa noite.”. Obrigado à todos boa noite.”
“Mas
que diabos ! Você não vai ler nada ?” resmungou um baleiro conhecido seu, que
fazia tráfico de cigarros da Indonésia, proibídos pelo Reitor naquele Campus.
Paulo então leu uma página qualquer, uma estrofe solta:
“
Solto no meu arbítrio tosco,
emerjo sobre um mar pútrido
Para espargir em um sonho fosco
O vendaval trépido e lúdico.”
“É
só, boa noite.”. No mesmo instante, Isa se aproximou das escadas e
encontraram-se em caminhos opostos. Ela já estava com o livro na mão e pediu-lhe um autógrafo. Paulo a interrogou:
“À quem devo oferecer?”. Isa não pensou e disse-lhe: “À sua Amada”.
Capítulo IV
Paulo
estava sentou-se na varanda da casa nova, que acabara de alugar, e sentia que
algo mais faltava em sua vida. Estava trabalhando em seu primeiro romance, uma
encomenda da Editora Better, que havia lhe dado esta oportunidade, pois
acreditava que encontrara ali um talento.
Paulo
aceitou de imediato a proposta, só não sabia ao certo o que iria escrever. Sabia que o livro conteria 753
páginas, nenhuma a mais, nem a menos, nada mais. Começara então a escrever o
livro das tais 753 páginas durante todo o verão. Algo estava faltando, não
sabia bem ao certo, mas por um instante pegou-se pensando em Isa. Aquele
vestido vermelho não conseguia se antepôr à personalidade dela. Estava ali,
vista em seus gestos, olhares e voz.
E foi pensando nos atos de Isa que
lembrara da última frase que ouvira dela “À
sua Amada”. Havia ali uma mistura de sarcasmo e inteligência ? Ou seria ela
a detentora de seus segredos amorosos ? Não importava mais o que pensava. Tomou
um banho rapidamente e lá foi Paulo Guilherme Vitto ao encontro de sua “Amada
Isa”.
A única lembrança que tinha em sua memória
era que, naquela noite do autógrafo, Isa havia lhe pedido que oferecesse o
livro ao Departamento de Psicologia, para sua professora de Metodologia
Científica. Ele achara inusitado, mas oferecera o livro à tal professora.
Poderia até ter oferecido um à ela também, mas não o fez.
De posse desta lembrança, dirigiu-se ao
Departamento e informou-se com a secretária o seu nome completo e endereço.
Ficara pronunciando seu nome na mente por alguns instantes: “Isa de Monteiro Cruz”. Soubera também
que ela morava um pouco distante e somente com a mãe.
Ao chegar no tal endereço, deu de cara com
a Sra. Carla Monteiro. Os dois se olharam profundamente, como se conhecessem-se
à anos. Paulo irrompeu o silêncio dizendo: “Boa tarde, gostaria de falar com
Isa”. Sra. Carla, ao mesmo tempo em que o olhava da cabeça aos pés, respondeu:
“Pois não, já vou chamá-la”. “Ah.. diga à
ela que eu...” Sra Carla virou as costas e não esperou que Paulo terminasse sua
frase torta e sem verbos, meio que para disfarçar sua timidez. Sentada à porta do seu nervosismo, se viu a
admirar as flores do “Jardim de Isa”, que assim batizaria mais tarde. Seus
pensamentos foram interrompidos pela doce e frágil voz de Isa Monteiro Cruz.
“Oi, o que deseja ?”. “Oi Isa ! Na verdade eu tenho um convite a lhe fazer, ou
melhor... em primeiro lugar, gostaria de entregar-lhe um exemplar de meu livro,
sabe, pois acho que a sua professora ficou com o outro”. “Ah, sim... obrigada
por ter lembrado. Como é o seu nome mesmo ?” . “É Paulo... Paulo Guilherme
Vitto” . “Lembrei ! Você é o escritor. Obrigada pelo livro ! Mas... e quanto ao
convite ?”
Paulo
era um escritor de poesias e contos, sintético e rápido, um homem de falas
certas e pensamentos avulsos.
“Isa, você quer namora comigo ?”
Capítulo V
Em
todos os locais na faculdade, eles só andavam juntos. Comiam juntos, estudavam
juntos Psicologia, pois Paulo se recusava a estudar Elétrica, e todos os
momentos da vida de Paulo, todos, não existiam sem Isa. Ela discutia sua obra,
opinava, criticava, concordava e fazia jus à todos os verbos para completar a
vida de Paulo. Foi um relacionamento que se formou de maneira tão rápida que
assustou a Sra. Carla Monteiro. Mas Isa sempre a acalmava: “Mãe, Paulo me faz
sentir segura. Não sei bem ao certo, mas me faz sentir assim.” . “Mas filha,
vocês nem chegaram a ser amigos !”. Isa resumia sempre na sua velha convicção:
“Mas mãe, amigo não se beija na boca...”.
Paulo
acabara de falar com Isa ao telefone e declamara sua vigésima quinta palavra de
amor para ela, o que a fazia sonhar em um mundo de sonhos, um atrás do outro.
Ela se imaginava sonhando e assim sucessivamente, um sonho atrás do outro.
Parecia mesmo desligada da realidade. Ali nascera todas as palavras que Paulo
pronunciava em sua mente, verso a verso, estrófe a estrófe.
Quando desligou, Paulo caiu em si e imaginou que o seu livro de 753
páginas estava tão perdido quanto seus pensamentos. Resolvera então parar na
página 653. Foi aí que tivera a idéia que aos poucos trabalharia em sua cabeça.
“A Novela da Vida Humana !”, como intitulou,
seriam 6 livros de uma grande novela, onde em cada capítulo um fato da
vida humana seria descrito com exaustão. Fatos universais tais como o Amor, o
Ódio, a Traição, o Medo, a Felicidade e a Morte.
De manhã, Paulo ligara para seu editor e
blbuciara três palavras. Aquilo rondava a sua cabeça como uma música suave que
dançava e ecoava sons de caixas registradoras. “Nós estamos ricos !”, gritara
Paulo. “O quê ? Você já terminou seu livro de 653 páginas ?”. “Que nada, Célio.
Eu comecei foi a escrever a vida humana !”.Isa apoiara completamente a idéia de
Paulo. Ele que só pensava em acabar o primeiro livro, foi profundo na arte em
que tomou para si. Era um fracasso na faculdade e sua paixão por Isa foi
processada e moída junto com sua inspiração.
“Isa, me ame, me ame forte, pois o livro é
sobre o Amor.”
A idéia era simples, porém parecia fluir
em sua cabeça como se já estivesse lá. Só ia abrindo a porta e seus personagens
saíam, um à um, prontos para vivenciar as situações que o autor desejava. Ele
dissertaria sobre os temas em um único ambiente: uma cidade imaginária, com
personagens pseudo-imaginários, pois todos os tipos de pessoas que conviveram
com ele estavam lá, sua mãe, seu pai, seus professores primários, Isa, Sra.
Carla, os vendedores de bala, todos, de forma seca e clara.
Passadas duas semanas de lançamento da
“Novela da Vida Humana”, com o Capítulo “AMOR”, Paulo já colhia os frutos do
sucesso de vendagem e crítica, mas acima de tudo, o livro havia agradado a Isa.
Era o que lhe bastava. Todos os seus atos de amor estavam contidos ali. Isa era
só calor. Uma temperatura que circulava sua áurea, transbordando paixão e
poesia.
Casaram-se, amaram-se e rodaram o mundo
real e fictício. Juntaram-se em uma realidade perigosa, que é a da imaginação.
Viveram o seu mundo, fazendo de suas rotações um eixo que só se quebraria mais
tarde, com a morte dos dois.
Paulo estavaem um período tão fecundo, que
escrevia dois livros ao mesmo tempo “O ÓDIO” e “A TRAIÇÃO”. Começara mais um
surto de criação. Dormia pouco, falava pouco e sofria muito com sua coluna. Isa
interrompeu este processo e falou: “Paulo, mamãe não gostou do primeiro
capítulo de ÓDIO”. “Ótimo Isa, vai ser um sucesso”.
Capítulo VI
Depois do lançamento duplo das novelas,
Paulo decidira que finalmente iria ficar no mínimo seis meses descansando ao
lado de Isa. E assim o fez. Na verdade não ficaria seis meses, mas todo o ano.
Ele e seu amor organizaram sarais, jantares, tudo em nome “da poesia e da literatura”, como costumava dizer Paulo. Mas o
certo é que eles não tinham acabado a faculdade e nem ele, nem Isa, tinham
planos para tal. Não passava por sua cabeça
o fato de que ainda tinha que produzir, em menos de dois anos, três
livros.
O fato que marcou ainda mais aquele ano,
além da mesmice e das poucas horas produtivas, fôra a morte da Sra. Carla Monteiro Cruz. Morrera
às 16:00 hs, no momento em que a Catedral da cidade proferia as badaladas
rotineiras das horas e horas. Possivelmente teria sido um infarto, já que
reclamara de fortes dores no estômago e de uma fadiga intensa em seus braços.
De concreto, nada; nem prognósticos. Mas para Isa o que realmente marcara
aquele ato fúnebre não era a morte em si de sua mãe, não era o fato da perda,
nem tão pouco a importância que sua mãe representara para ela. O que marcara
Isa naquela morte foram as últimas palavras ditas pela sua mãe: “Isa não ame”.
Aquele ano começara de maneira frenética
para Paulo, ele nem mesmo quis saber de festas, comemorações ou champagne.
Começava na virada, em pleno Reveillón, a sua retomada literária. Era um verão
espetacular, magnífico e que dava uma disposição necessária para ele ou qualquer
outro poeta escrever.
Já sabia que “O MEDO” não seria fácil
desenvolver, mas mesmo com a toda a insegurança, sentia que ao mesmo tempo era absorvido por um ar de
inspiração que nunca lhe havia tocado.O que mais comovera Isa foi a dedicatória
que lêra naquilo que Paulo chamava de “candidato
ao lixo se não convencer”. Eram doces palavras do autor dedicadas ao seu
amor :
“Isa não tomes o caminho incerto, uma curva, um arbítrio.
Não coma do dia toda a certeza de que dele tragará.
Traga para mim,
a fonte, o brilho.
O Amor, traga para mim.
E o solte. Solte a fumaça de sua boca,
para tornar minha vida mais louca,
cheia de imperfeições e nuvens.
Mas sem medo de estar em ti”.
Do verão ao outono, Paulo não produziu
mais nada. Além de doces poemas dedicados a Isa e fortes pensamentos escritos
ao léu. Dedicara todo o verão a amar, no sentido físico e espiritual da
palavra, Isa. Ela percebia que quanto mais era amada, menos produzia. Quanto
mais se dedicava à ela, menos se entendia com os verbos. Não escrevia nada,
absolutamente nada, ficara cego de pensamentos. As palavras, todas elas,
estavam ali. Livres e perplexas por verem que Paulo não as via.
Estavam todas querendo, uma sofrida que
fosse, participação em sua vida. Mas o amor não deixava. Parecia irônico,
escrever sobre o medo, pois era isso que sentia ao perceber que seu amor
barrava a sua felicidade plena, era a morte para sua criação.
Os editores durante todo ano pressionaram
Paulo para sair pelo menos uma novela. Até propuseram, no auge do desespero,
que ela seria publicada em capítulos avulsos, em uma promoção conjunta com o jornal Diário da Manhã. E a posteriore a novela seria editada por inteiro. Todas
essas medidas agradavam Paulo e ele entendia a pressão que sofria, mas de nada
adiantava que ele fosse pressionado, pois não conseguia produzir senão mais que
meia dúzia de palavras foscas.
Foi quando em uma noite fria de inverno, Isa Monteiro Vitto, resolveu
abandoná-lo. Pois, embora não entendesse, estava clara a proporção inversa que
ali existia. Quanto mais amava, menos ou
nada Paulo produzia. Juntou toda a sua lógica, refletiu sobre toda a sua vida,
juntou frases, momentos, dores, egoísmo, orgulho, sabedoria e um incrivel e
frio senso de lógica.
Isa partiu para nunca mais encontrar
Paulo. Partiu com a certeza e o ódio de que nunca mais amaria ninguém.
Epílogo
Paulo nunca entendeu a
atitude de Isa, mas o certo é que depois de sofrer com processos e amor
frustado, nunca mais fôra o mesmo. Andava solto, como verme, “uma bactéria a produzir pús”. Dormia
com várias mulheres, outras nem tão mulheres, putas bêbadas. Tinha o requinte
de comer pratos finos de dia e anoitecer arrotando rum.
Formou-se em Engenharia
Elétrica. Seus pais não mais cogitavam em ajudá-lo. Em uma madrugada de verão,
ligou para seu antigo editor e rastejou
doces palavras : “Tenho as três últimas novelas prontas. No mais, quero
meu contrato pago como combinado e que retirem todo o processo”. O editor
parecia que estava vivendo um sonho, mas estavam lá, as três novelas reunidas em
um único volume. “753 páginas de poesia e
sucesso”, dizia com entusiasmo Célio, o editor.
E Célio não errara.
Estava tudo contido lá, todo seu estilo, toda a sua obra. Nem é preciso falar
que o livro fôra um sucesso. Paulo fôra movido pelo ódio intenso da perda e da
atitude de Isa em decidir lhe abandonar. Era o fim, o fim de tudo. Ao mesmo
tempo, fôra abordado pela vontade insípida de voltar a escrever. Suas idéias
brotavam com o tempo e o próprio tempo encarregou de fazer a sua obra ficar
perfeita.
Paulo Guilherme Vitto
escreveu sobre o medo inspirando-se na
trágica história em que passava. Tivera medo de perder Isa, perdera. Fôra
feliz, e sabia que não mais seria. Descreveu sobre os dois temas com ar de quem
era PHD no assunto. 500 páginas para o MEDO, 252 páginas para a FELICIDADE. E
reunira em uma única página, não a morte física da carne apodrecendo e o
espírito elevando, escrevera e ditara para si a morte que supreenderia a todos.
Matou ao mesmo tempo sua poesia e seu imaginário. O enterro simbólico de sua
vida propriamente dita. Parecia que ali ele jogara todo o rancôr do medo de
perder Isa e a felicidade que tivera ao amá-la.
Parecia uma vingança,
mas era uma tétrica coincidência. Depois daquele último capítulo, morrera para o mundo, mas continuava vivendo,
como se quissesse falar a todo momento:
“Isa, me
ame”.
FIM
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