Baseado em uma história real.
Capítulo I
– A rua dos castrados.
Não
há quem se lembre, ou que pelo menos tenham dito: em qualquer esquina, bar ou
banco de praça. A cidade é muda e sem memória. Um baú de relicários
esquecidos...
O
fato é que na década de cinquenta, essa cidade (que aqui não terá nome) tinha
uma rua de homens castrados. Envoltos em luto e vergonha. Eram homens que se
aventuraram em seduzir e prostituir meninas, adolescentes; onde quase sempre
acabavam grávidas e se viam vingadas por um grupo denominado “justiceiros de
Deus”.
Os
Justiceiros de Deus eram todos devotos da Igreja católica, mais precisamente
frequentadores da Catedral Metropolitana da cidade, e assíduos trabalhadores da
pastoral. Dizimistas, organizadores de festas, quermesses e toda ou qualquer
organização que envolvesse a Igreja na cidade. Eram em sete, todos com mais de
quarenta anos e casados. Uns pais, outros até avós, e agiam com total
ratificação de suas esposas.
Dizem,
e não há qualquer comprovação desse relato, que foi a filha do fundador do
grupo que engravidara de um dos seus peões da fazenda que motivou a criação do
grupo. Outros já falam que foi quando a filha mais nova, de outro membro do falso
“prelado” interiorano, morreu de complicações do parto na capital. O fato é que
o maior entusiasta dos atos de violência, contra homens que sequer eram
julgados pela justiça, era seu Isaías.
Seus
Isaías era mecânico autodidata, um dos melhores da região. De carros de
passeios a conserto de ônibus, criou seus seis filhos com as mãos sujas de
graxas e macacão cinza. Seus quatro filhos homens começaram cedo a ajudá-lo e assim,
a aprender o ofício que levariam a ferro e a fogo para o sustento de suas
futuras famílias.
Assíduo
frequentador das missas matinais e devoto parceiro, quase um diácono, do padre
João. Seus Isaías foi um dos principais entusiastas da formação do grupo, e se
dizia ungido para a missão que Deus reservara para ele: ser o juiz e fazer
valer a sentença a todos os desonradores de adolescentes da cidade.
Era
dele a primeira casa doada para o desafortunado pecador castrado. Dele também a
escolha do Santo que abençoaria tais atos: São Bento de Núrsia, o monge
italiano. A espetacularização do ato da castração, ganhou tanto interesse da
população, que há quem fale que o último castrado, teve mais público que a Paixão
de Cristo encenada nas ruas do centro da cidade.
Seus
Isaías era o principal divulgador dos atos de castração: usava sua surrada
camionete para divulgar pelas ruas do centro e bairros distantes, os atos. Pode
até não haver lembrança de nenhuma geração mais nova, ou os mais velhos se
envergonham de falar que tais atos aconteciam, bem ali na zona rural de uma
grande cidade do Maranhão.
Até
o final de 1963, quando foi o último caso de castração, foram vinte e seis
homens se dividindo em sete casas de alvenaria simples, ajudados com
contribuições das pastorais da cidade, como também, por comerciantes e
familiares.
Eram
enclausurados e envergonhados pelas suas condições terem sido expostas a quase
toda a cidade. Eram homens mortos para a sociedade, quase monges devotos da
vergonha. Padre João foi voto vencido, quando tentou argumentar para acabar essa
barbárie medieval da castração pública. A liga das mulheres e todas as carolas
e misseiras, “avançaram” sobre o pároco, o fazendo apenas usar um ou outro
sermão para expor sua indignação. Seu Isaías em resposta ao Padre, fez um
discurso longo e veemente no dia vinte e um de março no do ano de 1963, agradecendo
a São Bento e a todos os justiceiros de Deus por terem, na visão dele, acabado
com os crimes sexuais na cidade.
Não
há quem lembre, que aquela rua que ficava no final da zona rural, que a noite
era contemplada com os sons do riacho e quedas d’água, como os ruídos de um roncador
acompanhando da sifonia de grilos, cigarras e sapos, era também a rua que se
ouvia choros e gritos de homens envergonhados e castrados.
Capítulo II
– A Reforma da Igreja e o Lutero Tupiniquim.
Foram
dois longos anos, do começo da década de sessenta do século passado, que fizeram
seus Isaías ficar mais famoso. De juiz executor de castrados a praticamente um
profeta do cristianismo puro, um mecânico anunciador do apocalipse. Mas não foi
da noite para o dia; seus embates com o Padre João e até com o Bispo do Estado,
começaram após a diluição do seu falso prelado da ordem de São Bento.
Seus
Isaías contra-atacou da forma mais veemente possível: questionou quase todos os
atos e ações do Padre João, expôs ideias mais radicais aos dogmas da Igreja
Católica, propôs conteúdos que iam ao encontro do Concílio Vaticano II, que lhe
concedeu uma fama de reformista tupiniquim.
A
paciência do Padre João ia de encontro com a pouca diplomacia de seus Isaías, que
mais parecia um Papa ao impor todas as suas definições ao reverendo da
paróquia. Ele transitou e incomodou diversas áreas da pastoral, propondo
inclusive mudanças no recolhimento do dízimo, implantação de votos de pobrezas
franciscanos, estudos da bíblia com interpretações teatrais, cursos extensos
para batismos e casamentos e a abolição definitiva dos leilões de frangos,
porcos e carne de boi nas festas santas.
Não se sabe exatamente quando deixou de
frequentar a igreja, as reuniões das pastorais e o terço de Nossa Senhora da
Conceição, mas foi no ano de 1964 que ele mesmo declarou não mais ser Católico Apostólico
Romano. Mesmo com sua esposa, dona Maria do Bom Parto e seus seis filhos,
jamais terem abandonado a paróquia e suas atividades e trabalhos semanais.
Foi
no Natal de 1964 que seu Isaías começou a pregar o evangelho e a fazer seus
sermões, quase sempre com um olhar veemente e crítico contra a Igreja Católica,
tendo claro, o Padre João como foco de seus discursos efusivos, virulentos e
enfáticos. Dessa época também, temos relatos dos começos de suas visões sobre o
fim do mundo. Misturando as descrições do apocalipse bíblico com visões do seu
dia a dia da sua cidade, o Lutero Tupiniquim, fez crescer sua fama e presença
de devotos no fundo do quintal de sua oficina.
Conforme
sua fama de Pastor fora crescendo, também vieram os adjetivos depreciativos:
doido, maluco, beato do mal, pastor da desgraça e tantos outros adjetivos que
seu Isaías ganhara, que envergonhavam todos os seus familiares e amigos mais
próximos. Há quem diga que seu rancor e ódio pelo fim do seu falso prelado de
São Bento, fora transformado em um objetivo para atacar a Igreja que tanto o
acolheu.
Capítulo
III – A Arrecadação forçada e o começo do fim do mundo.
Sempre
as vinte e duas horas de quarta-feira, uma rua da zona rural de uma cidade
importante do interior do Maranhão, se agitava com o fim do culto de Seu
Isaías. Seu terreno, que antes era usado para colocar os diversos carros e
motos de sua reconhecida oficina, agora era um improvisado templo com cadeiras
de ferro emprestadas pelo seu Zuza, conhecido dono do boteco do bairro, que com
fama de muquirana, justificou que era um investimento para assegurar seu lugar
no Céu. Seu Zuza, com sua vasta barriga e sua fiel camisa colocada no seu ombro
esquerdo, afirmava com toda veemência e fé que seu Isaías era um Profeta tardio
enviado por Deus.
Além
das cadeiras, a mesa, as toalhas, as águas, assim como, toda indumentária usada
pelo Profeta da Zona Rural, eram sempre doadas, recolhidas e lavadas pelas
irmãs Brito. Quatro carolas que abandonaram padre João, para seguir o Pastor
Isaías.
A
aglomeração se desfazia ao longo de pouco mais de uma hora e meia, e os quase
trezentos devotos era unanimes ao pedirem que seu Isaías fizesse também os
cultos aos domingos. O Pastor sempre agradecia e logo afirmava que era
necessário dinheiro, que não tinha um sistema de arrecadação criado, e que
sempre contava com a boa vontade de alguns fiéis que acreditavam na sua palavra.
Ele ainda afirmava que mesmo com o fim do mundo próximo, era preciso estrutura
militar e uma arrecadação robusta para educar e preparar a todos que o seguiam,
a entender e aceitar o fim do mundo e da existência.
Seus
cultos de quarta-feira tornaram-se cada vez mais famosos, atraindo fiéis até do
centro da cidade. Chegou, no culto que antecedia o Domingo de Páscoa, a ter mais
de quinhentas pessoas se abarrotando nos improvisados bancos de madeira e nas
cadeiras enferrujadas de seu Zuza. Aproveitou a oportunidade para dizer sobre a
arrecadação, e expos seu plano de confiscar o cofre da Igreja Matriz da cidade,
como uma forma de manter viva a sua palavra.
Alguns
até falam que o Padre João fez um acordo, para que fosse levada toda a quantia
arrecada do domingo de Ramos, e que deixassem a da Sexta-Feira Santa até o
domingo de Páscoa para a Igreja, que necessitava urgente do concerto do telhado
e do para-raios. Seus Isaías, assim contam, aceitou de imediato e jurou aos pés
da imagem de Nossa Senhora da Conceição, que ele e os seus seguidores jamais
fariam tal ato profano novamente. Padre João que era só alívio com a
possibilidade de nunca mais vê-los, fez um sinal da cruz ao se retirar e fechar
a porta da igreja da Matriz.
Capítulo IV
– Aqui é o fim do mundo...
“...Aqui, meu pânico e glória
Aqui, meu laço e cadeia
Conheço bem minha história
Começa na lua cheia
E termina antes do fim...”
Torquato Neto
No sábado magro de carnaval do ano de 1965, seu
Isaías fez sua pregação mais polêmica: atacou veemente todos os credos: do
catolicismo ao protestantismo, sobrando até para seus vizinhos da Assembleia de
Deus. Propôs um credo sem templos e sem moedas, ratificando inclusive o escambo
entre vizinhos. Profetizou que após os desastres e catástrofes que precederiam
o fim de tudo, se aos olhos de Deus sobrevivessem aqui na terra, alguns para
reorganizar o planeta; e se aqui (apontava sempre para o chão da sua
improvisada igreja), homens e mulheres “escapassem” de todas as demonstrações
divinas apocalípticas, estes enfim entenderiam que o dinheiro faria pouco
sentido.
Sobreviveria quem enfim entendesse a
importância da terra e do meio ambiente, assim falava para uma plateia cada vez
mais atenta e devota. Sobreviveria aquele, temente a Deus, não no medo, mas no
respeito tão pregado em templos e livros, mas pouco aplicado nos atos e
afazeres do dia a dia. Pediu de forma enfática que todos amassem uns aos outros
como a si mesmo, que eram necessária união e muitos afazeres porque o fim do
mundo estava próximo...
Segundo seu Isaías, em 5.6.65 o mundo eclodiria
em uma sucessão de desastres ecológicos, guerras e choque com uma estrela morta.
Os poucos mais de três bilhões de seres humanos da época, pouco sobreviveriam a
todo o conjunto de desgraças lançadas à Terra. Era preciso estar atento e forte
as todas as provações, dizia o Profeta. O capitalismo não faria o menor sentido
para os poucos mais de dois milhões de sobreviventes, completava.
A tarde daquele sábado magro de carnaval de 1965,
ficou agitada na rua da zona rural de uma das maiores cidades do interior do
Maranhão: há quem se lembre que até jovens fantasiados de fofões foram expulsos
da região, onde se começava uma vigília de orações, que ultrapassariam a semana
santa até terminar na fatídica data; para enfim todos estarem prontos ao fim, e
se assim sobrevivessem, preparados de corpo e alma para reconstruir o mundo.
Foi a partir da data fixada que seu Isaías
começou sua mudança: estava mais calado, taciturno, deixando a barba crescer,
como também, seus cabelos. O visual dava uma impressão de um novo Antônio Conselheiro,
um percursor do profeta Gentileza, sendo que suas palavras quando proferidas eram
de ataques a qualquer um que teimavam em seus credos e templos.
Foi desse semestre que se afastou de vez da sua
família, sendo que sua devota esposa nunca deixou de levar suas refeições na
oficina, agora seu templo. Dessa época também sua fama de louco, desvairado e demoníaco
aumentaram, não só na cidade como em toda região. Há relatos de que ele chegou
a expulsar dezenas de peregrinos, pois se ofendia com qualquer mínima tentativa
de associá-lo ao dom da cura ou a santificá-lo. Ele sempre dizia que estava a
serviço de Deus, e que na verdade tinha uma missão simples e direta; avisar e
preparar os seus próximos do fim do mundo.
Com a chegada do dia 5.6.65 a cidade foi maltratada
por um extenso diluvio, com o volume de água equivalente a dois meses de chuva.
O rio que banha a cidade, transbordou naquela noite, deixando centenas de
moradores da zona rural sem suas casas e pertences. Foi um dos maiores
temporais que a cidade vivenciara, com um número excessivo de raios e trovões,
mas que tão logo cessou todos retornaram a sua rotina de trabalhos, estudos e
credos. Padre João, no seu Sermão no dia de Santo Antônio, lembrou que o discurso
de Seus Isaías tirando as hipérboles e metáforas, só pedia para cuidarmos e amarmos
uns aos outros e cuidássemos da nossa natureza ,e que a Igreja estaria de
portas abertas para qualquer seguidor dele.
Seu Isaías sumiu. Uns dizem ter sido levado
pela força dos córregos que passavam pelo seu terreno, outros dizem ter fugido
de vergonha do seu fim do mundo ter se resumido a uma forte chuva. Dona Maria das
Dores, esposa do seu Zuza, chamou atenção em um pequeno discurso que ela
lembrara de Seu Isaías. Nele, disse ela, o Profeta Tupiniquim deixou bem claro que
o fim era um processo e que nem sempre o tempo de Deus, era o tempo profano dos
Homens: que o amarraram em horas, dias e em um calendário para ter o controle
de nossas vidas e corpos.
Coincidência ou não, Padre João em seu sermão
de despedida da Igreja da Matriz daquela cidade em 1978, lembrou do seu Isaías,
e citou o tempo como uma metáfora para lembrar do velho amigo e devoto. Disse,
e aqui escrevo literalmente suas palavras, que o tempo jamais seria capaz de fazer
esquecê-lo, e que sentia um certo orgulho dos cultos proferidos pelo profeta da
zona rural. Falou que sempre pedia para algum conhecido seu frequentar as
famosas quartas-feiras de seus sermões. Padre João disse que era uma questão de
tempo, até o homem provocar um desastre ecológico e destruísse o mundo, em uma
mistura de usura, fanatismo, guerras e extremismos. E terminou fazendo um sinal
da cruz para logo após profetizar: “e quem disse que o mundo não começou a
acabar naquele diluvio em 1965...”
*******FIM********
©José Viana Filho